DiscoverAmílcar Cabral 1973, assassínio em Conacri1/3: As lutas das duas "Guinés" entrelaçadas
1/3: As lutas das duas "Guinés" entrelaçadas

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Update: 2024-09-19
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Conacri foi palco em Janeiro de 1973 do assassínio de Amílcar Cabral, a capital da República da Guiné onde o PAIGC se instalara, para, de forma mais eficaz, luta contra o colonialismo português, do outro lado da fronteira. O relato do ocorrido há mais de meio século aqui, num episódio marcado pelas redes tecidas entre as duas "Guiné" vizinhas.

Porque no início dos anos 1970, as lutas das duas "Guinés" estavam intimamente entrelaçadas. 

A noite de 20 de Janeiro de 1973

Após uma tarde de trabalho, Amílcar Cabral deslocou-se à residência do embaixador polaco em Conacri, nesse sábado, dia 20 de Janeiro de 1973. Tadeusz Matisiak recebeu-o ao lado de vários membros do corpo diplomático. “Após o jantar, num ambiente muito descontraído, os convidados começam a dançar. Amílcar estava sorridente, descontraído, atento a todos”, lembra num livro sobre Cabral uma das pessoas presentes nessa noite, Oscar Oramas Oliva, então embaixador cubano na Guiné.

“Ele não era muito de recepções", lembra ao microfone da RFI a viúva de Amílcar Cabral, Ana Maria…". Mas nesse dia, ele disse-me: "Excepcionalmente vamos, até porque nunca recebemos ajuda da Polónia. Vamos lá, portanto, lembrar-lhes de que também precisamos de solidariedade deles". Então, fomos. "E vi que ele nunca mais queria sair. Como se tivesse o pressentimento de que era o último dia da vida dele. E então falava, falava, falava com todos". Os convidados foram-se embora a horas tardias.

O carro de Amilcar Cabral chega à sua casa no bairro de La Minière, em Conacri. O líder independentista está sozinho com sua esposa. Quando homens armados se dirigem a eles. À sua frente, Inocêncio Cani, veterano do PAIGC, Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC), movimento independentista liderado por Amilcar Cabral. Inocêncio Cani é um antigo líder das forças navais do movimento.

“Eles vieram tentar amarrar o Cabral", prossegue Ana Maria Cabral, "Ele disse-lhes: Não! Não me amarrem". Começaram a conversar. "Se há problemas, vamos ao secretariado, vamo-nos sentar e vamos discutir dos problemas ! Mas amarrar não, não vamos cometer o mesmo erro que os colonialistas ! Amarrar as pessoas é uma falta de respeito, uma humilhação para com um ser humano. Amarram-se galinhas, amarram-se bichos, e não seres humanos! É uma das principais razões da nossa luta de libertação!”.

“Ficaram naquela discussão e eu estava perplexa, conta Ana Maria Cabral, aquilo nunca mais acabava e eu não estava a perceber nada daquilo ". A certa altura, ele disse: "Eu prefiro que vocês me matem a ser amarrado!" E eis que, Inocêncio Cani aproveitou a oportunidade e disparou contra Amílcar. O líder da independência ficou ferido por um primeiro tiro e foi, depois, morto por uma rajada de armas automáticas.

O assassínio frente a Sékou

Uma vez que a residência cubana ficava situada a apenas 600 metros do secretariado do PAIGC e da residência de Cabral, o embaixador Oscar Oramas Oliva ouviu os disparos. “Imediatamente”, diz ele, “o telefone toca." É Otto Schacht, o responsável de segurança do PAIGC: "Senhor embaixador, acabam de disparar contra Amílcar, venha ao secretariado, ele está muito mal." Chegado ao local, o embaixador encontra Cabral estendido no chão numa poça de sangue. O embaixador considera necessário avisar o presidente Sékou Touré e dirige-se até à casa de Djibo Bakary, o responsável político nigeriano anti-colonialista, que também vive exilado em Conacri. Bakary vive perto da cena do crime e consegue contactar, por telefone, o Presidente guineense [1]. No relato que o diplomata cubano faz nessa conversa, parece dar a notícia ao chefe de Estado. Outras fontes apontam que Sékou já sabia do que tinha acontecido.

Os autores do complot, por outro lado, perseguem com dois outros objectivos: prendem Aristides Pereira, o número dois do PAIGC, na sede do partido... e levam-no para o porto, para aí, verosimilmente, embarcar para Bissau. Uma parte da equipa vai à prisão do PAIGC em Conacri, conhecida como “A Montanha”. São libertados dois cúmplices: Mamadou "Momo" Touré e Aristides Barbosa. Durante a noite, os autores do complot detiveram, ainda, vários dirigentes do PAIGC no regresso à "Escola Piloto" do movimento, a Escola Piloto; onde se deslocavam para assistir a uma palestra de Joaquim Chissano, um dos dirigentes independentistas da Frelimo moçambicana.

Os assassinos de Cabral pedem para falar com o presidente Sékou Touré e são recebidos durante a noite. O embaixador argelino está presente. O embaixador cubano também. Grande tensão: “Afirmam que a direcção do partido é controlada pelos cabo-verdianos em detrimento dos guineenses que lutam de armas na mão contra os portugueses", escreve o diplomata cubano no seu livro sobre Cabral. "Afirmam ter apresentado este problema em vários momento a Amílcar, que não só nunca os teria ouvido como teria dado mais poder a esses elementosAcrescentam que não queriam matar Cabral, mas sim conversar com ele, convencê-lo a mudar de opinião. Infelizmente, como ele resistiu e perante a confusão instalada, Amílcar foi baleado."[2] Apesar das explicações, os autores do complot são detidos. Contra as recomendações dos embaixadores de Cuba e da Argélia, o governo guineense também procedeu a detenções internas no seio do PAIGC em Conacri... A embarcação que transportava Aristides Pereira para Bissau foi travada e regressou ao porto de Conacri.

“Crapuloso crime do imperialismo”

No dia seguinte, no domingo, 21 de Janeiro, um comunicado de imprensa do comité central do Partido Democrático da Guiné (PDG), o partido único guineense, lido nas ondas da emissora La Voix de la Révolution, avança com a notícia da morte do líder independentista lusofono [3]. “O imperialismo acaba de cometer um dos crimes mais hediondos e dos mais ignóbeis no território livre da República da Guiné. Amilcar Cabral, secretário-geral do PAIGC, caiu ontem, sábado, dia 20 de Janeiro de 1973, pelas 22h30, em frente à própria casa, covarde e horrivelmente assassinado por mãos envenenadas pelo imperialismo internacional e pelo colonialismo português". São decretados dois dias de luto nacional. São anunciadas "exéquias solenes". O pós-Cabral é evocado no comunicado de imprensa que apela aos povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde a responderem "ao imperialismo e ao fascismo português" reforçando a sua unidade nacional, a sua organização política e ampliando o seu poderio bélico.

Na quarta-feira, 24 de Janeiro, quatro dias depois da morte de Cabral, o comité central do PDG reúne-se na sala de deliberações do governo entre as 16h e às 18h, numa sessão extraordinária. O encontro é alargado aos dirigentes do PAIGC e da Frelimo, presentes em Conacri. As autoridades guineenses mostram, através da sua postura, que tomaram as rédeas do caso. Ahmed Sékou Touré é o principal orador do encontro, durante o qual vai prestar conselhos aos dirigentes enlutados do PAIGC [4]. Sékou Touré enfatiza "a gravidade da infiltração nas fileiras do PAIGC dos autores do complot, cúmplices do imperialismo". Pede ainda que “sejam criadas todas as condições necessárias para a reorganização da direcção política do PAIGC”.

Perante os meios de comunicação estatais guineenses (rádio La Voix de La Liberté e diário Horoya), o dirigente guineense fez um balanço da investigação [5]. Ele cita vários depoimentos. A de Inocêncio Cani que confessou ser o assassino de Cabral. A do segundo sub-comandante da lancha nº 5 do PAIGC, um certo Valentino Cabral Mangana – na sua luta contra o exército colonial português, o PAIGC dispunha de uma frota de lanchas. Este segundo depoimento acaba por ser "capital", garante Sékou, porque, segundo ele, permite estabelecer que o objectivo das autoridades portuguesas, além de eliminar Cabral, era "acabar com o movimento de luta, opondo negros a mestiços; os guineenses contra os cabo-verdianos. “Depois disso, Portugal constituirá um governo com os que aplicaram esta missão. As forças portuguesas comeraram a recuar, estratégicamente, das ilhas de Cabo Verde, cooperando com aos negros da Guiné-Bissau para lhes garantir protecção.”

Conacri, capital do PAIGC em lutta

A omnipresença das autoridades guineenses e de Sékou Touré nos dias que se seguiram ao assassínio de Amílcar Cabral, o facto de que Conacri seja o lugar onde toda a intriga acontece, recordam as estreitas ligações, na altura, entre as lutas políticas destas duas Guinés.

A instalação do PAIGC em Conacri foi desencadeada depois do "Massacre de Pindjiguiti" a 3 de Agosto de 1959. O PAIGC tinha-se mantido, até então, essencialmente, como um partido que se empenhava em organizar a agitação nacionalista nos centros urbanos daquela que ainda se chamava "Guiné Portuguesa". A 3 de Agosto, as forças portuguesas reprimem o movimento grevista dos estivadores de Bissau, que suspeitam ter sido incentivado pela jovem formação política. O espectro da repressão acompanha os passos dos separatistas. Uma reunião secreta do PAIGC, organizada em Setembro em Bissau, toma um novo caminho: a tónica está agora no meio rural, a sede vai ser transferido para fora do país, o PAIGC estuda todos os meios para libertar o território nacional, incluindo a luta armada.

Depois de o poder de Ahmed Sékou Touré ter aceitado a presença do PAIGC no seu território, a organização política fez da Guiné a sua zona de recuo e de Conacri a sua base em retaguarda. Além da sede do movimento, a capital guineense alberga casas do combatente, um jardim-de-infância do partido (frequentado por cerca de sessenta

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